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Dois sistemas jurídicos e o homicídio
Como o homicídio pode variar de um país para outro? Cada sistema jurídico tem uma terminologia singular. A tarefa do tradutor é a constante busca de correspondentes que, muitas das vezes, não preenchem integralmente as acepções de um termo na língua-fonte ou, às vezes, nem sequer existem na língua-alvo. Todavia, a utilização do termo adequado não depende apenas de um bom dicionário, mas de conhecimentos técnicos por parte do tradutor. Assim, a formação jurídica em muito contribui para o sucesso profissional do tradutor e do intérprete, pois é necessário evitar traduções equivocadas, tais como “homicídio-suicídio” e “homicídio involuntário”, que não encontram correspondentes em nosso sistema, apesar de constarem de renomados dicionários bilíngües brasileiros. Expressões como estas apenas confundem o leitor, dificultando a compreensão do texto e, conseqüentemente, prejudicando o entendimento do sistema jurídico-alvo por completo. Ao examinarmos o crime de homicídio nos sistemas brasileiro e inglês, certamente encontraremos termos como homicídio, homicídio simples, homicídio culposo, homicídio culposo simples, homicídio culposo qualificado, homicídio doloso, homicídio qualificado, homicídio privilegiado, homicide, manslaughter, voluntary manslaughter, involuntary manslaughter, constructive manslaughter, gross negligence manslaughter e murder. São estes os termos aos quais tentarei, ao final, atribuir uma tradução tão próxima quanto o possível, valendo-me de um exame perfunctório dos sistemas jurídicos brasileiro e inglês traçando as linhas gerais do crime de homicídio em ambos os ordenamentos jurídicos, culminando com uma lista de termos português/inglês dos prováveis correspondentes. Sistema
brasileiro Trata-se de crime contra a vida sujeito a julgamento pelo Tribunal do Júri, assim como o aborto (art. 124 a 128), o infanticídio (art. 123) e o induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122). Em todos estes crimes o bem tutelado é a vida humana. O crime de homicídio (art. 121, CP) apresenta subespécies: o homicídio simples (caput); o homicídio privilegiado (§1.°); homicídio qualificado (§2.°); homicídio culposo (§§ 3.°, 4.° e 5.°) e homicídio doloso (§4.°). O caput do art. 121, o mais curto do diploma legal em exame, reza: “Matar alguém. Pena - reclusão de 6 a 20 anos”. O tipo penal define o homicídio simples. Esta pena, contudo poderá ser diminuída mas, para ser beneficiado por uma pena mais branda, o réu deverá provar que cometeu o crime:
Nestes casos o crime será o de homicídio privilegiado e o privilégio será examinado em quesitos feitos ao Júri. O parágrafo seguinte prevê o homicídio qualificado ao qual é atribuída uma pena de reclusão de 12 a 30 anos. O homicídio será qualificado quando for cometido:
Após esta brevíssima explanação, faz-se mister esclarecer o que é o homicídio doloso. O crime de homicídio doloso é aquele que é cometido intencionalmente. Isto é, o agente quis, ou assumiu o risco de produzir, o resultado morte, diferentemente do que ocorre com homicídio culposo, no qual ele age com imprudência, negligência ou imperícia. Os homicídios qualificados do §2.° são todos homicídios dolosos. O homicídio culposo previsto nos §§ 3.° e 4.° é o crime cometido por um agente que não quis o resultado morte. É causado por negligência (omissão do dever geral de cautela), imprudência (ação perigosa) ou imperícia (falta de aptidão para o exercício de arte ou ofício). O homicídio culposo poderá também ser qualificado quando:
Se não ocorrer nenhuma das hipóteses supra (§4.°), o homicídio culposo será dito simples. Uma peculiaridade do homicídio culposo é o fato de o juiz poder deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária, como, por exemplo, no caso em que o agente fique paraplégico ou na hipótese de morte de um filho. São estas, em suma, as figuras que fazem parte do homicídio no sistema jurídico brasileiro. Examinaremos, em seguida, o sistema inglês. Sistema
inglês Homicide é gênero do qual murder e manslaughter são espécies. Assim, o crime de murder ao qual é estabelecida a maior pena do sistema inglês, que é a de prisão perpétua (life imprisonment), é considerado um common law offence (crime previsto na jurisprudência, não possuindo definição em um diploma legal) e, como tal, foi definido por Coke:
Por meio deste conceito, podemos destacar os elementos que fazem do homicide um crime de murder. São eles:
Como se observa do desmembramento da definição supra, o crime de homicide e o crime de homicídio não apresentam os mesmos elementos, o que dificulta o uso da terminologia adequada, impedindo um perfeito paralelo entre os sistemas brasileiro e inglês. Todavia, a questão será melhor elucidada quando analisarmos a figura manslaughter. Sob diversas condições, o crime de murder poderá ser desqualificado para manslaughter, crime cuja pena é menos severa. Situação semelhante ocorre no sistema brasileiro quando, por exemplo, o homicídio simples é desqualificado para culposo ou privilegiado, ou ainda quando o homicídio deixa de ser crime na presença de uma das excludentes de antijuridicidade (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito) previstas nos arts. 23 a 25 na Parte Geral do CP. Há, pois, dois tipos de manslaughter: voluntary e involuntary. Dar-se-á voluntary manslaughter quando o réu puder valer-se das três defesas (three statutory defences) previstas no Homicide Act de 1957: provocation, diminished responsibility e suicide pact. O réu poderá também se valer de defesas gerais (general defences) aplicáveis a todos os crimes, entre elas: mistake, ignorance of law, intoxication, insanity, duress, etc. que, em regra, no Brasil assumem a denominação de atenuantes e agravantes. Todavia, examinaremos apenas as defesas previstas no Homicide Act, a saber:
Por fim, antes de estabelecermos a correlação entre os dois sistemas na terceira parte deste trabalho, falaremos sobre o involuntary manslaughter. Haverá o crime de involuntary manslaughter quando o agente não tiver o dolo (mens rea) do murder. São exemplos: dar um soco na vítima e esta cair e morrer, e ameaçar alguém com uma arma carregada que acidentalmente dispara. O crime de involuntary manslaughter subdivide-se em duas categorias principais: constructive manslaughter e gross negligence manslaughter. Haverá constructive manslaughter quando o agente praticar atos ilícitos e perigosos (unlawful and dangerous acts) que podem culminar em lesões corporais (physical harm) ou morte. Como se vê, não há a intenção de causar o resultado morte que advém de conduta ilícita e perigosa. Há, entretanto, a intenção de realizar o ato ilícito ou perigoso. Gross negligence manslaughter também é previsto na jurisprudência e foi definido em R v Bateman (1925) [19 Cr App R 8]:
A linha divisória entre as categorias do involuntary manslaughter não é nítida, e em muitos casos um crime é enquadrado em ambas. Conclusão Como poderá o tradutor transpor esses obstáculos? Tendo em vista a tecnicidade da matéria, é muito perigoso valer-se de “homicídio-suicídio” para definir o homicídio privilegiado do sistema inglês pelo pacto de suicídio. O leitor que se deparar como uma expressão desta, certamente nada extrairá da mensagem do texto. Uma solução mais clara, talvez (ressalvado o contexto maior do termo), seja uma tradução definitória como, por exemplo, chamar o voluntary manslaughter de homicídio privilegiado do sistema inglês e explicar também o privilégio; e.g. se é o de suicide pact, diminished responsibility ou de provocation. Assim, o tradutor transmitirá o verdadeiro conteúdo do termo na língua-fonte e não utilizará termos que sejam ininteligíveis para o leitor.
Luciana Carvalho Fonseca Corrêa Pinto é autora, tradutora e intérprete jurídica, advogada e especialista em direito pela PUC/SP. Mestranda em tradução e lingüística de corpus pela Universidade de São Paulo, ela também é professora de tradução e interpretação na Associação Alumni.
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